Os obstáculos que dificultam a despoluição do Guaíba
23/08/2024
Foto: Jefferson Bernardes/PMPA
Palco das provas de triatlo e maratona aquática, o Rio Sena esteve no centro de uma das maiores polêmicas das Olimpíadas de Paris: o momento em que teve a qualidade de suas águas criticada. Apesar dos investimentos realizados pelo governo francês para que o rio pudesse receber as modalidades – foram pelo menos 1,5 bilhões de dólares gastos em projetos de regeneração fluvial –, a organização das provas se viu obrigada a adiar alguns eventos sob temor de colocar a saúde de atletas em risco depois que testes indicaram que o Sena não atingira o nível exigido para balneabilidade. A triatleta belga Claire Michel precisou até mesmo ser hospitalizada após ter sido infectada por uma bactéria durante a realização de sua prova durante os Jogos de 2024.
A poluição de seu principal rio, no entanto, não é problema exclusivo de Paris, mas uma tendência na atualidade em grandes cidades de países industrializados. Foi o cenário com o qual o Humanista se deparou a investigar o tema depois da polêmica à francesa.
No Brasil, não é coincidência que o Rio Tietê, localizado na maior zona metropolitana do país, seja considerado o mais poluído do país, recebendo uma descarga de cerca de 690 toneladas de esgoto por dia. Já em Porto Alegre, o aumento da poluição do Rio (ou Lago) Guaíba se deu no decorrer do século XX como consequência do crescimento populacional e do desenvolvimento industrial da região. O fenômeno começou a se intensificar a partir da década de 1950, quando o Guaíba passou a ser considerado impróprio para o banho, exceção feita a alguns pontos situados em bairros da Zona Sul da cidade que recebem banhistas até hoje.
Saneamento básico
O professor Salatiel Wohlmuth da Silva, do Núcleo de Estudos em Saneamento Ambiental do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da UFRGS, destaca, porém, que os benefícios gerados por um rio limpo vão muito além da balneabilidade:
“No momento que a água de Porto Alegre tem uma melhor qualidade, a gente vai precisar gastar menos para tratar, então impactaria economicamente no custo do tratamento da água. A gente teria um custo menor e ainda a qualidade da água tratada poderia ser melhor”. O professor ainda explica que a melhora na qualidade das águas ainda se reverte na diminuição de doenças de veiculação hídrica e que o processo de despoluição do Guaíba passa, primordialmente, pelo tratamento de esgoto cloacal.
Em 2014, a capital gaúcha inaugurou a maior obra de saneamento básico de sua história, o Projeto Integrado Socioambiental (Pisa), no qual foram investidos R$ 586,7 milhões. O projeto contemplou obras de esgotamento sanitário e drenagem, elevando a capacidade do município de tratar seu esgoto de 30% para 80%. No entanto, passados dez anos do começo da operação do Pisa, a capital gaúcha segue tratando apenas 57% do esgoto que produz, conforme dados divulgados pelo DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos).
“Em alguns casos, falta a disponibilidade da rede de esgoto nos bairros, mas muitas vezes a rede existe e as pessoas não ligam as suas residências na rede de esgoto (…). Então, [o problema] nem sempre é apenas a falta de infraestrutura, mas sim a falta de conscientização das pessoas”, diz Wohlmuth. A fim de solucionar a questão, o professor sugere que a prefeitura crie um sistema de benefícios fiscais aos moradores que estejam com suas casas ligadas à rede de tratamento.
A limpeza do Guaíba, entretanto, não passa apenas por investimentos da capital, mas depende de uma gestão integrada dos recursos hídricos que compõem a Região Hidrográfica do Guaíba. Afinal, ter o controle da qualidade dos rios que deságuam no principal corpo hídrico de Porto Alegre é tão importante quanto tratar o esgoto que é despejado diretamente sobre ele. Assim, o processo de despoluição do Guaíba passa pela capacidade dos municípios banhados pelos seus afluentes em oferecer saneamento básico à sua população.
Em uma pesquisa realizada pela Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) que mediu a poluição dos rios gaúchos em 2022, os rios Gravataí e Sinos – que são afluentes do Guaíba – apresentaram os piores índices de qualidade de água do estado.
A pesquisa coletava água em alguns pontos dos rios, aferindo a poluição através de cinco parâmetros presentes nas amostras, como, por exemplo, o nível de nitrogênio amoniacal. Cada parâmetro é classificado entre “classe 1”, resultado que revela nível baixo de poluição, e “classe pior do que 4”, resultado que revela altíssimo nível de poluição.
Uma das amostras coletadas do Rio Gravataí revelou que o rio possuía três parâmetros “abaixo da classe 4”, um na “classe 4” e outro na “classe 1”. As amostras do Rio dos Sinos tiveram resultados mais discrepantes dependendo da data e do local em que foram recolhidas, mas revelaram índices também preocupantes. O relatório da pesquisa apontou que a poluição de ambos os rios é consequência da falta de sistemas de esgotos eficientes, das falhas de operação do sistema de tratamento de esgotos e, em áreas rurais, do uso inadequado de técnicas de manejo do solo.
Pró-Guaíba
Criado em 1989 pelo governo do estado, o Pró-Guaíba foi um projeto que buscou promover a despoluição da Região Hidrográfica do Guaíba de uma forma inovadora, tendo como objetivo devolver a balneabilidade aos seus rios. O projeto não buscava apenas combater os efeitos da poluição, mas também alterar o modelo de desenvolvimento que gera a degradação ambiental. Para isso, o Pró-Guaíba atuava em diversas frentes, promovendo práticas de agroecologia e de reflorestamento, e incentivando a diminuição da produção de lixo e de resíduos industriais.
“A consequência disso [descontinuidade do Pró-Guaíba] é que está faltando hoje uma série de intervenções de saneamento, de recuperação ambiental e de proteção de áreas
estratégicas”
– ARNO KAYSER, ex-integrante do Pró-Guaíba
A participação popular era outra marca do programa: o conselho deliberativo que coordenava o projeto era formado por secretarias de estado e representantes da sociedade civil, e o seu sustento provinha de recursos do Governo Estadual, do BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento) e de parceiros locais.
O ex-integrante do projeto Arno Kayser conta que, no início da década de 2000, o Pró-Guaíba já havia realizado o planejamento para a execução da segunda fase do projeto, que abrangeria 39 grandes conjuntos de obras em toda a extensão da região hidrográfica. Com a posse de Germano Rigotto (2003-2007), contudo, as prioridades do Governo Estadual mudaram e o plano jamais foi posto em prática. Kayser observa que atualmente falta um projeto que seja capaz de pensar em soluções integradas, que
envolvam toda a bacia.
Para além da poluição, Kayser também explica que o encerramento do projeto gerou impactos que estão ligados aos desastres ambientais que afetaram o estado nos últimos meses: “A consequência disso [descontinuidade do Pró-Guaíba] é que está faltando hoje uma série intervenções de saneamento, de recuperação ambiental e de proteção de áreas estratégicas, o que tem feito com que as mudanças climáticas tenham um impacto muito mais severo aqui no Rio Grande do Sul”.