Tributação deve acompanhar a universalização do saneamento básico
31/10/25

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A reforma brasileira dos tributos sobre o consumo foi apresentada como uma aposta na simplicidade e na eficiência. No setor de saneamento, entretanto, essa aposta é atravessada por uma tensão estrutural.
De um lado, a diretriz de regionalização consagrada no marco regulatório do setor, que reúne municípios deficitários e superavitários em blocos e dá sustentabilidade financeira. De outro, a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), tributos não cumulativos que entram em vigor em regime de transição e cujas alíquotas podem variar de município para município.
O resultado é o risco de reinserção de heterogeneidade fiscal em contratos regionalizados e de compressão das margens financeiras dos projetos de universalização.
Regionalização e tributação em confronto
A titularidade dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário é dos municípios. Essa titularidade garante autonomia para organizar, planejar e delegar a prestação. No entanto, grande parte dos municípios brasileiros não consegue sustentar economicamente a operação com receitas próprias.
Durante as décadas de 1970 e 1980, o financiamento federal via Plano Nacional de Saneamento (Planasa) compensou essa fragilidade. A cobertura urbana de abastecimento de água saltou de 54,4% para 88,1% e a de esgotamento sanitário de 22,3% para 43,5% [1]. O modelo dependia quase exclusivamente de recursos federais e de companhias estaduais de saneamento. Quando as crises fiscais dos anos 1990 atingiram essas companhias, a capacidade de investimento minguou e a expansão da cobertura estagnou.
Com a promulgação da Lei 11.445/2007 e, especialmente, da Lei 14.026/2020, a regionalização passou a ser vista como o instrumento apto a recompor escala econômica e a diluir riscos. A organização em blocos permite que receitas de municípios superavitários subsidiem investimentos em municípios deficitários e que se adote uma tarifa única ou harmonizada. A lei condiciona o acesso a recursos federais não onerosos à adoção desse modelo. Trata-se, assim, de um mecanismo de integração que combina técnica e solidariedade federativa.
Com a Emenda Constitucional 132/2023 e a Lei Complementar 214/2025, o sistema passa a contar com o IBS e a CBS. Prestadores que não recolhiam ISS ou ICMS passam a ser alcançados por esses tributos. O Senado definirá uma alíquota de referência, mas os entes federativos continuarão a fixar suas parcelas, formadas por uma cota federal (CBS), uma cota estadual (IBS estadual) e uma cota municipal (IBS municipal).
Durante o período de transição, que se estende de 2026 a 2033, coexistirão o sistema anterior e o novo regime, com regras específicas de apuração e créditos. A partir de 2033, apenas IBS e CBS subsistirão.
Os contratos de saneamento geralmente preveem uma tarifa única para todos os municípios do bloco. Um mesmo contrato pode abranger centenas de municípios com perfis socioeconômicos distintos. Se cada município puder fixar uma alíquota municipal própria, a soma das parcelas resultará em cargas diferentes dentro do mesmo contrato, podendo tornar o bloco economicamente heterogêneo.
O caso do Piauí, em que 221 dos 224 municípios foram regionalizados em um único contrato de concessão, é emblemático. A estrutura tarifária homogênea aplicada pela concessionária corre o risco de ser desequilibrada por variações na parcela do IBS referente à alíquota fixada pelo município.
Impacto sobre a bancabilidade dos projetos
Os contratos de concessão de saneamento são usualmente estruturados em sociedades de propósito específico. A SPE contrata dívida de longo prazo com bancos públicos e privados e emite capital próprio para patrocinadores e investidores institucionais. A solvência não decorre do balanço dos acionistas, mas do fluxo de caixa do próprio contrato. Esse fluxo precisa cobrir custos operacionais (Opex), investimentos (Capex), serviço da dívida e remuneração do capital.
Até a reforma, as concessionárias recolhiam PIS e Cofins a uma alíquota nominal de 9,25%. Na prática, a incidência efetiva variava entre 7,1% e 12,9% da receita, conforme estudo da Pezco Economics [2]. Com IBS e CBS, a base de incidência se expande e as alíquotas somadas podem alcançar 26,5% no cenário projetado.
Estimativas da GO Associados sugerem impacto próximo de 18% da receita bruta dos prestadores, mesmo considerando crédito parcial de insumos e bens de capital [3]. Cenário alternativo, com alíquota setorial reduzida, poderia limitar o impacto a 10% da receita bruta, mas essa redução depende de decisão política.
No financiamento de projetos (project finance), o índice de cobertura do serviço da dívida (DSCR, do inglês debt service coverage ratio) é a métrica central de bancabilidade. O DSCR é calculado pela divisão entre o caixa livre disponível para pagamento do serviço da dívida (Cads, do inglês cash flow available for debt service) e o serviço da dívida do período, que corresponde à soma de principal, juros e encargos.
Valores superiores a 1,00 indicam que o projeto gera caixa em excesso em relação ao pagamento da dívida. Na prática, contratos de financiamento fixam pisos contratuais e estabelecem gatilhos. Em projetos de abastecimento de água, os financiadores costumam exigir um DSCR mínimo de 1,3 [4]. Quando o índice cai abaixo do nível exigido, dividendos são bloqueados, reservas de serviço da dívida (DSRA) são executadas e, em último caso, os patrocinadores podem ser chamados a aportar capital adicional. Os financiadores também se reservam o direito de intervir na SPE (step-in rights) para proteger o projeto.
Para compreender melhor a mecânica desse indicador, considere uma concessão de abastecimento de água com Cads anual de R$ 80 milhões e serviço da dívida de R$ 50 milhões. O DSCR resultante seria de 1,6. Se a nova incidência tributária reduzir o DSCR para 1,2, a margem de segurança praticamente desaparece. O contrato continua válido, mas o risco percebido aumenta e o custo do crédito sobe.
Spreads são ampliados, prazos são encurtados e o percentual de capital próprio exigido de patrocinadores e investidores cresce. Como o financiador avalia o fluxo de caixa marginal do projeto para conceder o empréstimo, aumentos permanentes de carga tributária, sem compensação, reduzem a capacidade de alavancagem e encarecem o custo de capital do setor.
Em cadeias produtivas empresariais (B2B), a não cumulatividade permite que o imposto recolhido na etapa anterior seja compensado na seguinte. No saneamento, como o consumidor final é pessoa física, não há crédito gerado a jusante. Ainda existem créditos de alguns insumos e bens de capital (energia elétrica, produtos químicos, bombas, tubulações), mas esses abatimentos não neutralizam o efeito líquido, pois a base tributária inclui a tarifa integral. O tributo se converte em custo final e pressiona o preço ao usuário.
A demanda por água e esgoto é pouco sensível a variações de preço até certo ponto. O consumo físico se mantém estável mesmo com tarifas mais altas, mas a capacidade de pagamento das famílias tem limites. Quando a conta supera esse limite, a inadimplência cresce.
Com isso, a arrecadação efetiva cai, o fluxo de caixa diminui e a solvência do contrato é colocada à prova. Em cadeia, financiadores exigem DSCR mais elevado, aumentam as exigências de garantia e incorporam inadimplência ao custo do capital.
Reequilíbrio econômico-financeiro e mitigações
A Lei Complementar 214/2025 assegura que contratos administrativos sejam reequilibrados quando houver alteração na carga tributária efetiva. O artigo 374 reconhece o direito da concessionária à recomposição; o artigo 376 fixa o procedimento: o pedido deve vir instruído com cálculos técnicos e ser decidido em até noventa dias, prorrogáveis uma única vez. A decisão pode ser provisória, com ajustes posteriores.
As formas de recomposição incluem revisão de valores, compensações financeiras, aportes, ajustes tarifários e renegociação de prazos. Em teoria, a multiplicidade de instrumentos permite recompor o equilíbrio de forma adequada ao caso concreto. Na prática, a recomposição tarifária costuma ser o meio mais rápido de restaurar o fluxo de caixa.
Flexibilidade contratual não elimina dois riscos. O primeiro é regulatório: o regulador pode reconhecer apenas parcialmente o desequilíbrio ou adotar mecanismos lentos para recompor o caixa. O segundo é político: a recomposição por tarifa, mesmo quando juridicamente devida, enfrenta resistência social e eleitoral. Ambos reduzem previsibilidade e elevam o custo do crédito.
Para operacionalizar o reequilíbrio, recomenda-se a adoção de uma metodologia de fluxo de caixa marginal. O cálculo deve isolar o evento tributário, projetando o impacto sobre o fluxo de caixa livre ao longo de horizonte compatível com a vida útil dos ativos e usando o custo de capital regulatório (WACC) vigente. O reequilíbrio precisa dialogar com o calendário de revisão tarifária para evitar desalinhamentos temporais.
Além disso, em contratos regionalizados, é desejável fixar uma taxa intrabloco ponderada por receita municipal. Essa taxa seria calculada anualmente, refletindo a média da parcela do IBS fixada localmente, ponderada pela participação de cada município na receita do bloco. O uso de uma taxa intrabloco evita que variações nas parcelas locais da alíquota desestruturem a tarifa comum.
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) desempenha papel crucial nesse contexto. Por meio de normas de referência, a agência pode harmonizar o tratamento da questão tributária em todo o território nacional, evitando que diferenças metodológicas entre reguladores locais criem assimetrias competitivas ou comprometam a segurança jurídica dos contratos.
O acesso a recursos federais não onerosos é condicionado à adoção dessas normas, o que confere à ANA capacidade de induzir boas práticas regulatórias sem suprimir a autonomia de estados e municípios.
No caso da tributação, a norma de referência sobre revisão tarifária deve estabelecer parâmetros procedimentais e metodológicos claros. Entre eles, a definição de dados mínimos que a concessionária deve apresentar no pedido de recomposição tributária, prazos compatíveis com o ciclo tarifário, a metodologia de fluxo de caixa marginal para cálculo do impacto, e os critérios para calcular a taxa intrabloco com procedimentos de participação dos entes municipais.
A norma pode ainda recomendar verificação independente para validar dados apresentados pelas concessionárias. Ao estabelecer esses parâmetros, a ANA contribui para reduzir incertezas e proteger tanto a modicidade tarifária quanto a sustentabilidade dos contratos.
O impacto tributário não deve comprometer a universalização dos serviços. Medidas adicionais de mitigação podem ser adotadas, mas dependem de iniciativa legislativa.
A primeira seria a aplicação de alíquotas setoriais reduzidas de IBS e CBS para o saneamento, em razão de sua natureza essencial e da limitada possibilidade de repasse do tributo aos usuários, majoritariamente residenciais e institucionais. A tentativa de incluir o saneamento no regime de alíquota reduzida, contudo, não prosperou no Congresso.
A segunda medida seria a criação de créditos presumidos ou deduções vinculados a investimentos em redução de perdas e ampliação da micromedição. Nesses casos, a eficiência opera como substituta de Capex futuro em expansão de capacidade. Esses créditos poderiam ser compensados com o IBS devido, mediante previsão específica em lei complementar.
Ambas as alternativas exigem deliberação do legislador federal e, embora necessárias para mitigar os efeitos da reforma sobre o setor, dependem de vontade política e espaço fiscal que ainda não se materializaram.
Conclusão
O desenho da tributação sobre o consumo pode conviver com a engenharia contratual e financeira do saneamento. Para isso, é preciso reconhecer a anatomia setorial: regionalização demanda coerência fiscal intrabloco; bancabilidade depende de previsibilidade, margem no DSCR e respostas regulatórias rápidas; a não cumulatividade tem alcance limitado, e a demanda, embora inelástica no consumo físico, se quebra na capacidade de pagamento das famílias.
Legislador, regulador e financiador precisam agir de forma coordenada. Se o Brasil deseja universalizar o acesso à água e ao esgoto até 2033, conforme o marco legal, a política tributária não pode caminhar em direção contrária. Ajustes de alíquota, fortalecimento de tarifa social, compensações fiscais e normas de referência convergentes são o caminho para alinhar tributos, regulação e financiamento.
O custo de uma reforma tributária mal calibrada será medido não apenas em percentuais de receita, mas em obras que não saem do papel, famílias sem atendimento e metas legais descumpridas.
